Quando somos miúdos estamos formatados para apreciar todas as pequenas coisas da vida e a entendê-las como aspectos fundamentais daquilo que nós somos.
Depois crescemos e deixamos de ver as essas pequenas coisas da mesma forma, porque já conhecemos o som das ondas e o cheiro da relva cortada de cor.
Aos poucos vamos transferido essa importância, que anteriormente atribuíamos a coisas pequeninas, para aspectos cada vez mais práticos. E, sem nos apercebermos, começamos a distanciar-nos cada vez mais daquilo que éramos.
Lembro-me que, quando era miúda, a minha casa estava sempre cheia de gente aos fins-de-semana. Amigos, padrinhos, crianças, gente que dava dois beijinhos repenicados e me dizia que estava cada vez mais qualquer coisa...depois, quando a poeira da excitação inicial asentava, começavam a falar daquelas coisas chatas:o emprego do não sei quê, o preço da casa do filho do qualquer coisa e era aí que eu ligava o botão do off e corria para o quintal a proteger-me do aborrecimento, enfiando-me na casota da Lassie...
Entretanto, também eu já fui arrastada para o universo das pessoas crescidas, e agora sou eu que digo à afilhada do Eskisito:"Espera só um bocadinho, a mãe está a ter uma conversa importante com a Maria..." enquanto a tento sentar para que ambas consigamos discutir "aquelas" coisas que antigamente me faziam bufar de tédio.
E é assim que se opera a metamorfose. Não sei quando foi que deixei de ser uma miúda despreocupada para me transformar naquilo que sou.
Aos poucos, e sem nos apercebermos, e de tanto andarmos a contar tostões e a fazer ginástica com o tempo, deixamos para trás, escondidas num qualquer canto recôndito da mente, a banda que nos acompanhou nas desventuras de liceu, o filme kitsch que nos levou às lágrimas, a canção que dizia aquilo que não conseguíamos dizer...enfim, suplantamos o sonho com a realidade.
A vida afoga-nos em preocupações, maldizemos a sorte daqueles que se dedicaram ao sonho e sentimos pena de nós próprios, que cumprimos horários e acatamos ordens. E achamos que, verdadeiramente, somos nós e as nossas preocupações, quem faz o mundo girar. Um mundo de coisas prácticas e cinzentas. Que interessa a mim que a não sei quê tenha gravado um disco, de que serve mais um filme que custou milhões? Não serve de nada.
E depois damos connosco, numa tarde de sábado, a seguir ao almoço com os amigos, a assistir a um filme e a aproveitar dessa forma o dia que a vida nos dá para viver.